terça-feira, 16 de setembro de 2025

Giuseppe Gioachino Belli - Alexandre O'Neill

     O falecido Ricardo Averini, director, durante alguns anos, do Instituto Italiano em Portugal, bem insistiu comigo quando eu lhe comuniquei o meu interesse por Belli, para que, de parceria, traduzíssemos e publicássemos uns 50 sonetos dos 2279 que Giuseppe Gioachino Belli produziu quase clandestinamente...
    Confesou-me que o poeta era um dos seus autores de cabeceira. Eu, que pouco antes descobrira esse extraordinário escritor, entusiasmei-me com o projecto, mas, como de costume, fiquei-me pelo entusiasmo. Vida cheia de afazeres, dificuldades que se anunciavam bastante grandes na tradução (saiba-se que Belli escreveu os seus sonetos em dialecto em dialecto romanesco, o linguajar do povo de Roma) levaram-me a ir adiando o trabalho. Cada vez que me encontrava, Averini perguntava-me «Então o nosso Belli?» Eu, encabulado, respondia-lhe: «Dentro em breve...» E, assim, «deixei» Averini morrer sem, ao menos, entabular com ele uma conversa mais a sério sobre esse nosso vago propósito.
    Mas a inquietação ficou.
    Comprei a edição integral de I Sonneti, uma biografia de Giuseppe Gioachino Belli e um «Vocabolario Romanesco Belliano & Italiano Romanesco», este graças á ajuda bibliófila e monetária do João Nuno Alçada, então residente em Roma.
E foi um pasmo que ainda hoje dura! 
    Não é que eu tenha lido o Belli todo e muitas vezes. Porém, dezenas de sonetos (marcados de origem, os mais significativos, com um asterisco, na edição em 4 volumes da Feltrinelli) deram-me a ideia da grandeza do poeta. Claro que é um autor que me vai a pêlo. A sua vida decorreu entre 1791 e 1864, «entre os anos da decadência e o ocaso do Estado Pontifício, entre a Revolução Francesa e o nascimento do nosso Estado unitário», como diz, no prefácio da edição feltrinelliana, Carlo Muscetta.
    Belli, na sua «biografia exterior», era um respeitoso, um conformista. Começou por publicar in lingua, isto é, em italiano, La Campagna (1805), «centenas de lugares-comuns da literatura idílica», continuou com as Lamentazioni (1807), reincidiu com La Morte della Morte (1810) e com o Convito di Baldassare (1812), para se dedicar, pouco depois, com alguma vivacidade, a traduções e adaptações teatrais. A sua existência, plena de vicissitudes que não vou aqui esmiuçar, encontra equilibrio e conforto quando Belli se casa com uma viúva, Maria Conti, treze anos mais velha que ele.
    De respeitoso, de conformista (o dia-a-dia pode pregar cada partida a um sujeito!), passa Belli, que começa a frequentar, quase sem dar por isso, as ideias e a literatura progressistas da Europa de então, a um engagement que o havia de levar muito longe, nada menos que aos sonetos.
    E os sonetos são o mais explosivo dos artefactos poéticos que podem conceber-se naquela época. Tudo é passado ao crivo nessa gigantesca soma poética. A corrupção do mundo papalício, a prostituição (a mundana e a pobretana), a avareza, a cupidez, a vaidade dos cortesãos, o quotidiano da plebe romana, as praticas eróticas de gente acima de qualquer suspeita, etc., etc. Belli acende o rastilho e não fica pedra sobre pedra.
     A introdução aos sonetos, do punho do próprio Belli, começa desta nobre maneira:
    «Eu deliberei deixar um monumento daquilo que hoje é a plebe de Roma. Nela existe, seguramente, um tipo de originalidade: e a sua língua, os seus conceitos, a índole, o costume, os usos, as práticas, as luzes, a crença, os preconceitos, as superstições, tudo o que, em suma, lhe diz respeito, mantém um cunho que, talvez por acaso, se distingue do perfil característico de qualquer outro povo. Nem Roma é tão grande que a sua plebe não faça parte de um grande todo, quer dizer, de uma cidade de sempre solene memória. Além disso, parece-me que a minha ideia não vai desacompanhada de novidade. Este designio tão cheio de cor, aconteça o que acontecer ao assunto, não encontra trabalho precedente que se lhe possa comparar.»
    Em 1982, o excelente fotógrafo Paulo Nozolino mandou imprimir um álbum com uma sequência das suas fotografias, álbum a que pôs o título de Para sempre. Sendo jovem e nada pessimista, que se lembrou Paulo de fazer? Pediu-me que eu lhe traduzi-se para o livrinho um dos mais amargos sonetos do Belli. Aqui fica a tradução, necessariamente imperfeita, que eu consegui levar a cabo, mesmo sem o concurso (precioso) do meu caro Ricardo Averini. 

 

A VIDA DO HOMEM
 
Nove meses no fedor, depois nas faixas
por entre crostas, beijocas, lagrimonas
Depois à trela, na andadeira, em camisinha,
pára-turras na testa, cueiros por calções.
 
Depois começa o tormento da escola,
o á-bê-cê, a vergasta e as frieiras,
a rubéola, a caca na cagadeira
e um pouco de escarlatina e de bexigas.
 
Depois o ofício, o jejum, a trabalheira,
a pensão a pagar, as prisões, o governo,
o hospital, as dívidas, a crica,
 
  o sol no verão, a neve no inverno...
E por último -- e que Deus nos abençoe! --
vem a morte, e acaba no inferno.

 
        Roma, 18-01-1833
        Giuseppe Gioachino Belli