quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

O engano

No meio da tarde você atende a uma chamada, e uma voz estranha pergunta: "Alô, Waldemar?"

É ASSOMBROSO que em pleno século 21, 135 anos depois de Graham Bell ter inventado o telefone, ainda haja pessoas incapazes de aceitar esta situação tão banal da vida cotidiana: o engano. Sem dúvida, o leitor sabe do que estou falando: no meio da tarde você atende a uma chamada e, do outro lado da linha, uma voz estranha pergunta: "Alô, Waldemar?".
Seu nome não é Waldemar. Você não se casou com um Waldemar nem batizou assim qualquer um de seus filhos, de modo que só há uma explicação, simples e evidente: foi engano. Você engole o pequeno mau humor que escorre dos segundos perdidos, aceita a frustração de ter-se imaginado necessário ou querido em algum canto da cidade, no meio da tarde, quando, na verdade, era de um Waldemar que precisavam. Você diz, seco, mas não antipático: "Amigo, aqui não tem nenhum Waldemar: foi engano", e já está tirando o telefone da orelha, pronto a voltar a seus afazeres, quando a voz ressurge, indignada: "Como assim não tem nenhum Waldemar?".
Como assim, "como assim?!"?! O que passa pela cabeça do cidadão?
Que você é o Waldemar, mas está mudando a voz e fingindo ser outro só para não atendê-lo? Ou que você é um assaltante e invadiu a casa do Waldemar -que agora tenta gritar, amordaçado e amarrado a uma cadeira: "Mmmm! Mmmm!"?!
Você respira fundo. Sabe que, se for arrancar os cabelos toda vez que lida com seres estranhos, numa cidade como São Paulo, muito rápido estará igual ao Kojak. Diz apenas, paciente e didático: "Olha, amigo, eu não me chamo Waldemar, não mora nenhum Waldemar nesta casa, foi en-ga-no, entendeu?".
Não, ele não entendeu. Estamos lidando com um maníaco, um homem cuja disfunção neurológica impede de compreender os desvios dos polegares, dos satélites, das linhas telefônicas. Inconsolável, ele se debate: "Mas não pode ser! Me deram esse número! Disseram que era do Waldemar!". Zen, você insiste: "Amigo, te deram o número errado, ou você teclou errado, sei lá, é muito comum, foi ENGANO!".
Seguem-se alguns promissores segundos de silêncio. Você acha que ele enfim se convenceu, que desligará o telefone e dirá à mulher "Aurélia, você não sabe que coisa assombrosa! Liguei pro Waldemar e atendeu outro homem!", mas a voz reaparece, acusatória: "Então, qual é o seu número?!".
Aí já é demais. Seu número, você não dirá. Não sabe o sujeito que a Constituição brasileira garante a presunção da inocência? Não sabe que, de acordo com a velha máxima latina, in dubio pro reu, cabe à acusação provar que você é -ou esconde- o Waldemar e não a você provar que não o é -ou não o esconde?
Catando no fundo da alma a última migalha de generosidade, você pergunta: "Que número você ligou?". Ele diz o número. Evidentemente, não é o seu. Você mostra para ele o equívoco, "olha aqui, o meu é cinco oito, não três oito, tá vendo?". Pasmo e contrariado, ele finalmente aceita a situação, despede-se rispidamente e desliga.
Você pode então -Jesus seja louvado!- voltar a seus afazeres, a saber: dar mais um aperto na corda que amarra o Waldemar e continuar o arrombamento do cofre.


FOLHA DE SÃO PAULO - 22/06/11
ANTONIO PRATA

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

A Doença, o Sofrimento e a Morte entram num bar - Ricardo Araújo Pereira

Um livro marcante e que me transportou numa aventura de emoções e aprendizagens. Não sei se foi pelo livro em si ou pelo significado que tem para mim mas sinto que ler este livro foi um primeiro passo para uma nova etapa da minha vida.


Impossível assimilar a totalidade do seu conteúdo numa só leitura, coisa que suponho que se deve á vastidão da cultura do autor comparada com a que eu tenho neste preciso momento.

Assim de forma concisa pretendo apenas dizer que gostei muito deste livro que que definitivamente o voltarei a ler em breve, assim como também outros livros de Ricardo Araújo Pereira.

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

O Transporte do Gás Engarrafado - Alexandre O'Neil

Fernandes, a transportadora, bem gostava
de não encontrar, logo à primeira, o cliente.
De cada vez-garrafa ela cobrava
vinte e oito e seiscentos, minha gente!

Passeava a garrafa, consoante o utente
em sua residência se encontrava ou não
(ou a transportadora dizia que era ausente);
e assim, de cada vez, Fernandes facturava,
vinte e oito e seiscentos, salvo erro ou omissão.

Por seu turno, o usuário protestava
contra os atrasos da distribuição.
Que sim! Que sim! Que estava sempre gente em casa!
E olhava, desolado, esquentador, fogão.

Somava e seguia sobre rodas
a Fernandes, que as sabia todas,
e a Cilda, até às vezes lhe pagava
mais do que recebia pela garrafa.

Entretanto, trabalhadores tomaram
a situação em mão
e a distribuição do gás já repensaram
para bem da população.

Que faz do meu país o baladeiro audaz?
Canta raivas, amores… Por que não canta o gás,
Mais a Fernandes e a distribuição?


Alexandre O'Neil